Eixo Cérebro-Intestino na Infância: como emoções impactam a digestão e o bem-estar
Perceber que o intestino da criança “desanda” justamente nos períodos mais difíceis da rotina é algo muito comum no consultório. Mudança de escola, adaptação à creche, nascimento de um irmão, separação dos pais, excesso de atividades, noites mal dormidas.
Muitas vezes o primeiro sinal de que algo não vai bem emocionalmente não aparece em palavras, mas no corpo. Dor abdominal frequente, constipação, diarreia, distensão, enjoo, seletividade alimentar, irritabilidade sem causa clara. Tudo isso pode ser a linguagem do eixo cérebro-intestino em funcionamento.
Falar sobre o eixo cérebro-intestino na infância é falar sobre uma conversa constante entre emoções, sistema nervoso, intestino e microbiota. Não se trata de algo abstrato ou alternativo. É fisiologia pura, sustentada por um número crescente de estudos, e que faz ainda mais sentido quando olhamos para a criança como um todo, inserida em uma rotina real, com desafios emocionais e ambientais próprios da infância.
Intestino e cérebro: uma conexão muito mais próxima do que parece
O intestino não é apenas um tubo digestivo. Ele abriga mais de cem milhões de neurônios, forma o chamado sistema nervoso entérico e participa ativamente da regulação do humor, do comportamento, do sono e da resposta ao estresse. Cerca de 90 a 95% da serotonina do corpo, neurotransmissor ligado ao bem-estar, à saciedade e ao equilíbrio emocional, é produzida no intestino.
Essa comunicação acontece por várias vias ao mesmo tempo. Pelo nervo vago, que conecta diretamente o intestino ao cérebro. Pelos neurotransmissores, como serotonina e GABA. Pelo sistema imunológico, através de citocinas inflamatórias. E pela microbiota intestinal, o conjunto de bactérias, vírus e fungos que habitam o intestino e influenciam desde a digestão até o funcionamento do cérebro.
Por isso, não faz sentido separar rigidamente sintomas físicos de sintomas emocionais na infância. O que acontece no cérebro influencia o intestino e o que acontece no intestino também influencia o cérebro.
Quando as emoções aparecem primeiro no intestino
Muitas famílias chegam angustiadas ao consultório porque a criança parece “bem emocionalmente”, mas vive com dor abdominal, intestino preso ou solto, gases excessivos ou recusa alimentar. Em outros casos, o comportamento muda. A criança fica mais irritada, ansiosa, chorosa, com dificuldade para dormir ou se concentrar, e junto com isso surgem os sintomas digestivos.
A ciência vem confirmando algo que os pais observam na prática há muito tempo. Alterações na microbiota intestinal estão associadas a mudanças no humor, na ansiedade e no comportamento infantil. Estudos mostram que crianças com menor diversidade de bactérias intestinais apresentam mais sintomas emocionais e comportamentais. Outras pesquisas apontam que o uso de fibras prebióticas específicas pode melhorar humor e reduzir sintomas de ansiedade em poucas semanas. Probióticos também vêm sendo estudados como moduladores do estresse, da atenção e da regulação emocional.
Isso não significa que emoções “causem” doenças intestinais nem que sintomas digestivos sejam “coisa da cabeça”. Significa que o organismo da criança funciona como um sistema integrado. Quando há estresse emocional persistente, o intestino responde. Quando o intestino está em desequilíbrio, o cérebro também sente.
A infância como uma fase sensível do eixo cérebro-intestino
Os primeiros anos de vida são especialmente importantes para a formação da microbiota e do eixo cérebro-intestino. Fatores como gestação, parto, amamentação, introdução alimentar, uso de antibióticos, infecções, qualidade do sono e ambiente emocional familiar influenciam profundamente esse eixo.
A microbiota infantil é mais instável e sensível. Pequenas mudanças na rotina, períodos prolongados de estresse, alimentação pouco variada ou excesso de ultraprocessados podem ter impacto maior do que teriam em um adulto. Por isso, sintomas digestivos recorrentes na infância merecem sempre um olhar atento, amplo e sem reducionismos.

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Alimentação como ferramenta de equilíbrio, não como cobrança
Cuidar do eixo cérebro-intestino não significa criar dietas rígidas, demonizar alimentos ou transformar a alimentação em mais uma fonte de estresse para a família. Pelo contrário. A alimentação precisa ser vista como ferramenta de apoio, previsibilidade e segurança para o corpo da criança.
Alguns princípios simples fazem diferença quando pensamos em microbiota e bem-estar emocional infantil:
- variedade alimentar, especialmente de frutas, verduras e legumes, já que a diversidade de fibras alimenta diferentes bactérias do intestino
- inclusão regular de alimentos com efeito prebiótico, como aveia, banana madura, maçã com casca, cenoura e batata-doce
- presença de alimentos fermentados adaptados à idade e aceitação da criança, como iogurte natural e kefir
- redução do consumo frequente de ultraprocessados, ricos em açúcar, aditivos e gorduras de baixa qualidade
- hidratação adequada, essencial para o funcionamento intestinal e prevenção da constipação
A hidratação merece atenção especial. Uma estimativa prática é oferecer cerca de 35 ml de água por quilo de peso corporal por dia, além de líquidos presentes nos alimentos. Água influencia diretamente a motilidade intestinal e o conforto digestivo, impactando também o humor e a disposição.
O que isso muda na forma de cuidar das crianças
Quando entendemos o eixo cérebro-intestino, mudamos a pergunta. Em vez de focar apenas em “como corrigir o comportamento” ou “como tratar o intestino”, passamos a observar o contexto. Como está a rotina dessa criança. O sono. As refeições. O ambiente emocional. A relação com a comida. As pressões do dia a dia.
Sintomas como birras frequentes, dificuldade para dormir, ansiedade, dores abdominais ou intestino preso não devem ser vistos como falhas da criança ou dos pais. São sinais de que o organismo está tentando se adaptar a algo que merece atenção.
Cuidar do intestino, nesse cenário, é cuidar também das emoções. E cuidar das emoções é, muitas vezes, aliviar o intestino.
Olhar para o eixo cérebro-intestino na infância é lembrar que saúde não se constrói em partes isoladas. Ela nasce da integração entre corpo, emoções, ambiente e relações. E é exatamente nesse olhar mais humano, acolhedor e científico ao mesmo tempo que conseguimos promover bem-estar real para as crianças e suas famílias.

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